Estamos passando por um desses moradores de rua crônicos, que já se tornaram comuns nas grandes cidades brasileiras, e o homem se adianta para pedir alguma coisa. Mas ele não pede uma esmola: pede que lhe digamos que horas são. É um pedido que sempre me espanta; por que um homem que vive totalmente à margem do sistema produtivo, sem compromisso algum a não ser com suas necessidades mais primárias, precisa saber as horas? Será que seu pedido só tem a função de autorizá-lo a trocar algumas palavras com alguém que lhe parece viver em melhores condições que a dele? É possível. Talvez ao perguntar as horas, uma pergunta tão neutra, uma demanda tão fácil de se atender, ele esteja buscando o meu reconhecimento. Se eu lhe disser que horas são, estarei reconhecendo sua humanidade e estabelecendo um princípio mínimo de equivalência entre a sua vida e a minha. Ele se dirige a mim e, surpresa! – pede-me as horas em vez de pedir uma esmola. É um favor entre iguais que em vez de humilhá-lo, o dignifica.
Mas existe outra razão para que alguém que não tem hora marcada para nada na vida queira saber que horas são. É a necessidade de se inserir numa das modalidades predominantes de organização dos corpos, nas sociedades industriais. Ao se informar sobre as horas o mendigo está tentando se manter dentro da mesma temporalidade que me organiza, que organiza os corpos de todos vocês: no caso, a temporalidade ritmada, demarcada e veloz das sociedades industriais. Estamos tão acostumados a ela que nos espantamos ao ler alguns trechos do Capital onde Marx, há menos de dois séculos, retratou e analisou a violenta imposição do ritmo do trabalho industrial sobre os corpos dos homens, na Europa dos séculos XVIII e sobretudo no XIX. Hoje, submetemos todas as horas do nosso dia à violência do ritmo do trabalho industrial, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
[Maria Rita Kehl]