15.2.10

"O realismo nasceu de nossas percepções na vida diária. Em nossas experiências do dia-a-dia no mundo, é abundante a prova de que coisas são materiais e separadas umas das outras e de nós.
Evidentemente, experiências mentais não se ajustam bem a essa formulação. Experiências dessa ordem, como o pensamento, não parecem ser materiais, que é o motivo porque criamos uma filosofia dualista que relega mente e corpo a domínios separados.
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A separatividade, insiste o místico, é uma ilusão. Se meditarmos sobre a verdadeira natureza do nosso ser, descobriremos, como descobriram os místicos de muitas eras e tempos, que só há uma consciência por trás de toda diversidade.Por qualquer nome que seja conhecida, todos concordam que a experiência dessa consciência una é de valor inestimável.
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Os místicos, portanto, são aqueles que dão testemunho dessa realidade fundamental da unidade na diversidade. Uma amostragem de escritos místicos de culturas e tradições espirituais diferentes confirma a universalidade da experiência mística da unidade.
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Os místicos alertam que todos os ensinamentos e escritos metafísicos devem ser considerados como dedos apontando para a Lua, e não como a própria Lua. Ou como nos lembra o Lankavatara Sutra: 'Esses ensinamentos são apenas um dedo apontando para a Nobre sabedoria. Destinam-se ao estudo e orientação das mentes discriminadoras de todas as pessoas, mas não são a Verdade em si, que só pode ser autocompreendida no mais profundo estado de nossa própria consciência.'
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Finalmente, tal como a ciência, o misticismo parece ser uma atividade universal. Nele não há paroquialismo. Este surge quando as religiões simplificam os ensinamentos místicos para torná-los mais acessíveis às massas da humanidade.
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O misticismo implica a busca da verdade sobre a realidade final. Já a função da religião é algo diferente. A maioria das pessoas, perdidas na ilusão de separatividade do ego e ocupadas nas atividades a que o mesmo se entrega, não se sente motivada a descobrir por si mesma a verdade. Como, então, pode a luz da realização do místico ser compartilhada com estas pessoas?
A resposta é: simplificando-a. Dessa maneira, os provedores da verdade mística substituem a experiência direta da consciência unitiva pela ideia de Deus. Infelizmente, Deus, o criador transcendente do mundo imanente, é refundido na mente da pessoa comum na imagem dualista de um poderoso Rei dos Céus, que governa a Terra, embaixo. Inevitavelmente, a mensagem do místico é diluída e distorcida.
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Ainda assim, a despeito das dificuldades e falhas da organização, a religião de fato transmite o espírito da mensagem do místico, e é isso que lhe dá vitalidade. Afinal de contas, o valor para os místicos de perceber a natureza transcendente da Realidade é que eles se tornam seguros em um modo de ser no qual virtudes como o amor se tornam simples.
Mas como motivar a pessoa comum, que não vivencia a unicidade necessária, para amar o próximo? (..) O método consiste de um conjunto de práticas, baseadas nos ensinamentos originais, que formam o código moral das várias religiões - os dez mandamentos e a regra áurea da ética cristã, os preceitos budistas, a lei alcorânica ou talmúdica, e assim por diante.
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Chegamos, assim, aos três aspectos universais de todas as religiões:
1. Todas as religiões começam com a premissa de que há um erro em nossa maneira de ser. O erro é variadamente denominado ignorância, pecado original ou apenas sofrimento.
2. Todas as religiões prometem libertação desse erro, contanto que a 'senda' seja seguida. A libertação é variadamente denominada salvação, libertação da roda do sofrimento no mundo, iluminação ou uma vida eterna no reino de Deus, o céu.
3. A senda consiste em abrigar-se na religião e na comunidade formada pelso fiéis da mesma que cumprem um código de ética e normas sociais.
Note o dualismo básico na primeira premissa: o errado e o certo (ou o mal e o bem). Em contraste, a jornada mística consiste em transcender todas as dualidades, incluindo a do mal e do bem. Note também que a segunda premissa é transformada em cenouras e porretes pelo clero - céu e inferno. O misticismo, por outro lado, não estabelece uma dicotomia entre céu e inferno, pois ambos são concomitantes naturais da maneira como vivemos."

Amit Goswami, O Universo Autoconsciente